quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

O meu bibliotecário por António Vilhena

O meu bibliotecário. Ensinou-me tanta coisa. Foi o mais sábio, aquele que me levou pela mão, que me ajudou a encontrar as palavras nos dicionários, a decifrar os códigos da catalogação, a desvendar os autores e, principalmente, a abrir um novo mundo ao mundo que os meus olhos abriam.

Era pequeno, tinha a idade do meu filho, oito anos, quando entrei naquela sala da biblioteca pública, com as paredes “forradas” de livros, chão a cheirar a cera, janelas altas e vidros limpíssimos. Via-se a Praça da República, onde um pelourinho manuelino sinalizava o centro, onde outrora tiveram lugar autos-de-fé, mas não de justiça. Naquela praça, centro do mundo das nossas vidas, espaço de encontro e de história, estava a biblioteca pública, gáudio da curiosidade de graúdos e miúdos. Quando se é pequenino a escala das coisas assume dimensões gigantes. Foi essa a percepção que tive quando entrei na biblioteca que iria mudar a minha vida. Nunca tinha visto tanto livro! Era uma sensação estranha e fascinante. Tinha perante os olhos um universo onde quase tudo era possível. Ninguém me levou, encalhei na placa que estava na fachada, empurrei a porta e, quando entrei, uma mão pousa nos meus ombros, uma voz troante encontra a minha ansiedade: - Já conheces a biblioteca? Vou mostrar-te a tua secção. Ou seja, havia uma estante, à altura do meu tamanho, que tinha livros de aventuras e curiosidades científicas. Aquela era a minha secção. Nesse mesmo dia, fiz a inscrição. E em troca, podia levar três livrinhos para casa. O meu primeiro termo de responsabilidade foi com uma biblioteca. Passados muitos anos, percebi que foi a melhor coisa que me aconteceu naquela idade.

Saía de casa e “escondia-me” atrás de um livro até ir jantar. Por ali passavam figuras “estranhas”, carregando livros de lombada grossa, escritos numa língua “inacessível”: latim. Esses senhores, de uma certa idade, sentavam-se numas mesas ao fundo da sala, onde havia candeeiros pretos e tinteiros brancos de porcelana. O ritual era sempre o mesmo: tiravam e punham óculos, molhavam a caneta de aparo no tinteiro e ali ficavam até o bibliotecário anunciar o fecho. Esse era o momento em que eu fixava a página, fechava o livrinho e ia colocá-lo na estante, até ao dia seguinte. Quando abria os olhos, na Praça da República, havia uns instantes para me habituar à luz, sentia que tinha aprendido alguma coisa. Essa sensação impelia-me a correr até casa. Chegava suado e com os bofes na boca. Logo de seguida, a minha mãe perguntava: Onde estiveste a jogar à bola? Aquela pergunta irritava-me. Se lhe dissesse a verdade não ia acreditar, por isso, arrumava o assunto dizendo que tinha sido guarda-redes. Mas a minha cabeça estava cativa da história que tinha deixado a meio, aquele cheiro a cera, as janelas altas… e o silêncio. O tempo passou, eu cresci com os livros mas, também, com o sábio bibliotecário que me iniciou no ofício das vidas secretas que se escondiam nas estantes. Desse homem que usava fundos de garrafa nos óculos, guardo a memória e o trato fino, o jeito paternal e o carinho com que tratou todos os meninos que ousaram entrar no seu “templo”. Era o sábio dos sábios, uma distinção honrosa que todos lhe reconhecíamos. Depois do 25 de Abril de 1974, descobri que era, também, um sábio da liberdade, um cultor da esperança, um curador dos livros proibidos, um homem solidário e fraterno. Chamavam-lhe o Martins da Biblioteca. Para mim, foi sempre o meu bibliotecário. 

António Vilhena

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