terça-feira, 30 de junho de 2009

Biblioterapia: uma abordagem do conceito

Cruzei-me há poucos dias com o termo Biblioterapia. Era completamente novo para mim e estando ligado a uma das minhas maiores paixões: o livro e a leitura, a curiosidade de o desvendar despoletou. Pesquisei em livros e revistas da especialidade e por fim recorri às novas tecnologias. Digitei a pesquisa no Google e fui analisando os resultados, seleccionei alguns dos textos encontrados e por fim mergulhei na sua leitura, a fim de compreender este conceito.

O que é então a biblioterapia?

Em 1949, Caroline Shrodes, na sua tese Bibliotherapy: a theoretical and clinica-experimental study (Biblioterapia: um estudo teorético e clínico-experimental) formulou o conceito de biblioterapia como sendo “um processo dinâmico de interacção entre a personalidade do leitor e a literatura imaginativa, que pode atrair as emoções do leitor e liberá-las para o uso consciente e produtivo.” Para a Autora, “a literatura ficcional é a mais indicada para garantir uma experiência emocional do leitor, efectivando a terapia de introspecção capaz de efectuar mudanças”.

Muitas outras definições foram surgindo ao longo dos anos, mas até à data o estudo de Caroline Shrodes continua a ser o referencial teórico básico das pesquisas sobre biblioterapia.

É no entanto ponto comum entre os vários estudos que a leitura constituiu uma forma de terapia na medida em que esta é um processo dinâmico, sempre em alteração e movimento. Ou seja a leitura é susceptível de provocar a mudança.

Mas como pode a leitura provocar mudança?

De acordo com Alice Bryan (SHRODES, 1949) “a leitura implica uma interpretação - que é em si mesma uma terapia, posto que evoca a ideia de liberdade - pois permite a atribuição de vários sentidos ao texto”. O leitor rejeita o que não aprecia e valoriza o que lhe agrada, dando vida e movimento às palavras, numa contestação ao caminho já traçado e numa busca de novos caminhos. Ou seja, o efeito terapêutico da leitura reside no seu processo narrativo/ interpretativo. Este processo permite ao leitor verificar que há mais de uma solução para o seu problema; ajuda o leitor a comparar as suas emoções com às emoções dos outros; auxilia o leitor a pensar na experiência de vida em termos humanos e não materiais; proporciona informações necessárias para a solução dos problemas, e, estimula o leitor a encarar sua situação de forma realista de forma a conduzir à acção.

Isto significa portanto, que a biblioterapia não contempla apenas a leitura, mas também o comentário que lhe é adicional. Ou seja esta terapia não consiste no simples acto de reconhecer as letras e as palavras, mas implica, a sua interpretação. É necessário transformar a mera informação em conhecimento, processo que envolve reflexão.

Citando Alberto Manguel “para chegar mais longe e de uma forma mais profunda, para ter a coragem de enfrentar medos, dúvidas e segredos ocultos, para questionar o funcionamento da sociedade, necessitamos de aprender a ler de outra maneira, de forma diferente, que nos permita aprender a pensar.”

É certo que esta terapia terá com certeza mais eficácia nos problemas de foro psicológico, porém há muito tempo é defendido que a saúde física está intrinsecamente ligada à saúde psicológica. Já desde a época de Sócrates muitos filósofos e intelectuais defendiam que não é possível curar o corpo sem primeiro curar a alma, lugar de onde tudo fluí. Sócrates defendeu que a alma deve ser tratada mediante certos conjuros, esses conjuros são os discursos belos. E estes certamente, poderão ser encontrados nos livros.

Todos podemos portanto praticar a biblioterapia para aliviar as tensões diárias. As pessoas devem familiarizar-se com o livro não apenas como um objecto de trabalho. Ele é muito mais do que isso. O leitor deve deixar que as letras formem frases significativas e encantem os momentos do seu dia. Desta forma, estará ao mesmo tempo a receber e a transmitir experiências, que o conduzirão num processo de crescimento mútuo gerado pelo efeito do encontro entre o leitor e o conteúdo do livro.
Miriella de Vocht
12 de Junho de 2009

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Luto pela felicidade dos portugueses de Rui Zink

Luto pela felicidade dos portugueses: crónicas benditas/ Rui Zink
Vila Nova de Famalicão : Quasi, 2007

O Autor:

Rui Zink nasceu em Lisboa em 1961. Escritor e Professor no Departamento de Estudos Portugueses na Faculdade da Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é autor duma obra diversificada e multifacetada.

Sinopse:

Entre 2000 e 2005, Rui Zink colaborou na revista SOS Saúde, onde tentou responder às questões que verdadeiramente interessam aos Portugueses. A saber: O sexo dá felicidade? A felicidade dá dinheiro? O dinheiro dá saúde? De uma forma mordaz, irónica e bem-humorada, Rui Zink aborda de forma brilhante temas do dia-a-dia, que parecendo superficiais, fazem parte do quotidiano português.
Em 2007 estas crónicas foram reunidas e publicadas em livro sob o título “Luto pela felicidade dos portuguesas: crónicas benditas”

Excerto do livro:

“Banhos de luz

Por razões que não vêm ao caso, ultimamente ando sempre um passo atrás do tempo. Durante anos gabei-me de ser dos poucos luso-nascidos capazes de ser pontuais, agora o Portugal-que-há-em-mim apanhou-me e não me quer largar os fundilhos das calças. É uma chatice e causa algum stress. Agora até já marco encontros para «entre as oito e as oito e meia», e só apareço… às nove. O poeta Alberto Pimenta chega sempre cinco minutos antes a todos os encontros, e assim devia ser. Ou «devia de ser», se falarmos futebolês. O desejo de não fazer os outros esperar revela mais respeito do que o «detesto esperar» egoísta e mimado que estamos habituados, muito mal habituados, a proferir.
A razão por que se pede sempre o trabalho «para ontem» é também muito simples. As próprias pessoas que encomendam trabalhos não são pontuais e só se lembrar do que era necessário quando já se está muito perto do prazo. Isto tudo provoca um stress que já não me tenho em mim.
Mas o tempo é apenas uma parte do problema, um indicador, um sintoma. Mais grave do que o mimo do «detesto esperar» (e que tal levar um livro?), é a mania de Querer Tudo: as vantagens, só as vantagens, sem aceitar as desvantagens inerentes que, à laia de lastro, qualquer vantagem traz. (…)”

terça-feira, 23 de junho de 2009

Lançamento do livro de Adriano Pacheco “O Rasto dos Barrões”

Vai ser lançado no dia 25 de Junho pelas 18.30, no auditório da Biblioteca Municipal de Arganil o mais recente livro de Adriano Pacheco: "O rasto dos “barrões”

Natural da Vila de Alvares no concelho de Góis, Adriano Pacheco nasceu a 18 de Janeiro de 1939. Começou a desenvolver a actividade literária aos 50 anos de idade, como colaborador da Imprensa Regional, colaborando com O Jornal de Arganil, A Comarca de Arganil e O Varzeense.

Publicou o primeiro livro “Tempestade na Alma” em 1999. A este seguiram-se “Lenda de Alvares”, “Sina do Sinhel”, “A queda do teu reino”, “O povo ratinho”, “Silvos do vento”, “Febre no Rabadão”, “Umbrais dos Penedos”, “Dez reis de gente” e mais recentemente “O rasto dos Barrões”, que foi lançado em Góis no mês de Maio.

Em “O rasto dos Barrões” Adriano Pacheco levanta "novas questões e interrogações na procura de reconstituir presente e passado mediante o recurso e o apelo à memória dos personagens." Memórias que são de acordo com as palavras da nota de abertura “o elo mais forte na consolidação da identidade do ser humano”.

Não falte, compareça ao lançamento na Quinta-feira, pelas 18.30 horas!

Excerto:

“(…) Mas o Raimundo era um rapaz decidido e a cidade não o seduzia pela sua beleza, mas sim pelas oportunidades que gerava à volta dos que queriam singrar num meio onde todos os serviços eram pagos. Apercebeu-se disso, quando se lhe deparou um homem que tinha, como modo de vida, vender água e uma mulher que apregoava fava-rica, ou alguém que engraxava sapatos, ou simplesmente fazia recados às madames, ali ao virar da esquina. Não haja dúvida, o mundo foi e será sempre dos espertos.

Para quem foi habituado a trabalhar que nem um danado, arrancar torga debaixo duma torreira de calor e fazer carvão, abastecer-se de géneros, cozinhar a sua magra refeição e dormir ao relento à beira dum forno durante a queima, mal podia entender esta vida fácil da cidade onde todos dependiam de todos e havia sempre lugar para mais um, fosse quem fosse.

Esta vida fácil feita de biscates, dava-lhe a volta ao miolo, sentiu por isso que tinha ali a sua oportunidade. (…)”

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Como Pinóquio aprendeu a ler

Em viagens através de blogues encontramos o texto “Como Pinóquio aprendeu a ler” de Alberto Manguel.

“Na escola, Pinóquio aprendeu a ler, mas não se transformou num leitor. Isto porque, apesar de ter aprendido a descodificar o alfabeto, não aprendeu a ler em profundidade. O que faltaria a Pinóquio para aprender a ler de uma forma que lhe permitisse pensar? (…)”

Acredite que vale a pena. Leia o texto na íntegra aqui.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

17 de Junho – Dia Mundial do combate à desertificação

Enquanto houver uma flor

Enquanto houver ainda uma flor
nos dispersos oásis do deserto,
semente de Esperança e Amor
do seio da Terra brotarão, decerto!

Poluídos estão os rios, os mares,
os solos e os céus do mundo todo,
não havendo recantos ou lugares
onde não se respire um sujo lodo!

O Homem, louco e cego pela ânsia
de mais luxúria e poder sem dó,
ao poluir o mundo por ganância
só vai ficando cada vez mais só!

Enquanto subsistir uma só flor,
povos, cantais de coração aberto!
Sementes de Esperança e Amor
não deixam ser a Terra um deserto!

Vieira de Barros in Este sol que nos aquece

segunda-feira, 15 de junho de 2009

O que seremos no Futuro?

Há dias detive-me a olhar para as estantes da sala de adultos da minha biblioteca e lembrei-me do texto de Karen M. Drabenstott e Celeste M. Burman “Revisão analítica da Biblioteca do Futuro”. O texto está já um pouco apanhado pelo tempo perspectivando no futuro mudanças que são já presente. Mas não deixa de ter interesse e a verdade é que me fez olhar as estantes com outros olhos. Sem dramatismo, é verdade, mas dei comigo a pensar, que vivemos uma época de grandes mudanças tecnológicas. O saber encerrado em todos aqueles livros, que ocupam alguns, muitos, metros de estantes, poderia estar reunido numa grande base de dados que ocuparia um espaço real mínimo. Disponível on-line estaria acessível a todos os interessados sem problemas de horário ou de acessibilidades.

Seremos as mesmas pessoas nesta biblioteca do futuro que é já presente? Faremos a mesma leitura dos textos? Ou o facto de acedermos a eles obrigatoriamente, num ambiente imerso em novas tecnologias da comunicação vai mudar a imagem cerebral que hoje construímos, ao ler em formato papel?

Poderemos pensar, afinal qual é a mudança? Neste momento já utilizo essas tecnologias, já acedo a bibliotecas digitais e ainda faço as mesmas leituras! Farei? Olhando para trás será que sou a mesma pessoa ou eu própria estou a mudar?

O contacto com as novas tecnologias pode levar-me a construir novos modelos de pensamento. Representações que antes não existiam e que passam a fazer parte do quotidiano.

Mudanças lentas, das quais não temos uma consciência muito nítida, mas que vão construindo um caminho novo que as gerações vindouras vão percorrer conhecendo-o cada vez melhor e por esse motivo tendo-o já como seu.

Entretanto o fácil acesso à informação banaliza-a, toda ela parece importante. Olhando melhor verificamos que se repete, é superficial, em muitos casos enganosa e isso representa um perigo para todos aqueles que não desenvolveram um espírito crítico e têm dificuldade em discernir entre, o que é importante e o que não acrescenta nada à sua biblioteca interior levando-os a naufragar num mar de informação que os pode aniquilar como seres pensantes transformando-os em meros receptores de informação.

Por este motivo há uma necessidade cada vez maior de saber seleccionar a informação procurando a que verdadeiramente interessa.

As grelhas de avaliação de páginas web podem ser uma boa ajuda e a sua divulgação e utilização deve passar a fazer parte do serviço de referência de qualquer biblioteca pública ou escolar.
Margarida Fróis

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Dia Mundial do Ambiente

Como eram cheios os dias de tudo!
As fontes erguiam sorrisos no ar
E a neve caía para nossa surpresa.
Minhas mãos seguras tinham sempre as tuas
Com tal mocidade, com tal alegria,
Que nunca se viu as folhas caírem.
Nossos pés descalços corriam na terra
E o verde que há no ar das florestas
Fazia chorar os olhos erguidos
De sombra, de cantos, de mil vibrações,
Naturais, entregues, sem outro destino.
Nos brancos carreiros, onde era o lugar,
Entre as leves folhas ali colocadas,
Cantavam os grilos de todas as luas
Sua breve nota da grande canção.
Passavam nos passos da nossa corrida
Todas as perfeitas, virginais gazelas,
Bichos nunca vistos saindo do lago…
Estalavam puros os risos das plantas,
Dormiam baixinho descobertas corças
E os peixes corriam à orla do mar
E nadavam no peito das nossas pegadas.

Parados enfim e sentados no chão,
Comíamos frutos tendo toda a alma
Nas cores e nos cheiros, novas descobertas.
E pegando na mão que tu me entregavas,
Tão sério e sereno como água e rio,
Meus dedos corriam pela tua pele
E tudo era cheio de todas as coisas.
Cada novo gesto era agradecer,
E em longos minutos a tarde caía.


Pedro Tamen in Tábua das matérias
Lisboa: Círculo de Leitores, 1995

quinta-feira, 4 de junho de 2009

A leitura dos sentidos

Jean Marie Goulemot em “De la lecture comme production de sens” (Goulemot,1993:115), fala de uma leitura cultural, como produtora de sentidos, de compreensão e de prazer. Para o autor a leitura seja popular, erudita, ou letrada é sempre produtora de sentidos, de sensações.

«Lire, c’est donc constituer et non pas reconstituer un sens. La lecture est révélation ponctuelle d’une polysémie du texte littéraire.» O autor pretende com este texto entender a leitura sob o ponto de vista do leitor, as situações de leitura e os factores que as determinam.

O autor define o leitor, na sua ligação com o texto, através de uma fisiologia, uma história e uma biblioteca.

A postura física que assumimos quando lemos, sentados no sofá ou na cadeira, à mesa ou secretária, em locais públicos ou na intimidade, dá alguma indicação da atitude que assumimos perante a leitura. Como se lê e em que locais. Lemos na mesma posição física um romance, banda desenhada, um livro de estudo, ou poesia? A leitura e as emoções que a leitura nos pode proporcionar revelam-se na forma física como lemos?

“Il y a une dialectique inscrite dans l’histoire du corps e du livre”, diz Goulemot.

Contudo, a atitude física que assumimos enquanto lemos, passa para além do próprio texto, porque tem a ver com o nosso próprio percurso, com a nossa sensibilidade, com a forma com que vemos o mundo, a partir dos nossos próprios conhecimentos. Nós somos como que uma caixa de ressonância de tudo que nos envolve e reagimos de acordo com a nossa sensibilidade, através do olhar com que vemos o mundo e o reconhecemos. Isto leva-nos a uma apropriação muito singular da interpretação, do sentido do texto que lemos e a atitude física que assumimos ao ler, revela esses sentimentos.

Há um percurso. Um percurso histórico que nos constrói como cidadãos e que nos marca na nossa forma de pensar e de ver os acontecimentos, de reagir perante um texto. Este está para além das palavras que o compõem, o texto dos sentidos, dos nossos sentidos que condiciona inexoravelmente a leitura que fazemos, à luz da história cultural de que fazemos parte.

O mesmo texto lido em épocas e situações diferentes desperta em nós sentimentos diversos. É essa a riqueza do texto e da leitura que desperta em nós sensações novas e permite vários olhares. Poderemos dizer que um bom texto literário é aquele que permite várias leituras. É a riqueza da arte seja ela qual for.

A leitura de um texto não se faz isolada de outros textos. É precisamente esse percurso de que falava há pouco e que nos vai construindo a partir das leituras que fazemos. A intertextualidade está presente sempre que lemos ou escrevemos. Outros livros que já lemos, outros textos que estudámos, outras vivências culturais estão presentes porque interiorizamos essas ideias que depois desabrocharam dentro de nós e nos permitem perceber outros significados, outros sentidos. “Lire, ce serait donc faire émerger la bibliothèque vécue, c’est-à-dire la mémoire des lectures antérieurs et des données culturelles. » (Goulemot,1993:122)

Esta noção de biblioteca, que não é a biblioteca física, mas que guarda e disponibiliza as fontes do saber, é como que um enorme arquivo onde guardamos, dentro de nós, toda a informação, todas as sensações que vamos recolhendo ao longo da vida. Mas é também um arquivo colectivo que nos insere numa comunidade e numa cultura em que nos movimentamos e onde aprendemos "comunitariamente” experiências que fazem parte de um percurso de vida. As experiências que vivemos fisicamente e aquelas que vivemos através dos livros que lemos e da informação que nos chega, alimentam e constroem as nossas convicções.

“Louis Marin a écrit que le récit est un piège, j’ajouterai qu’il est une mécanique à produire des effets et que la lecture est en fin de compte la mise en branle de cette machine dans une confrontation avec le corps, le temps et la culture acquise.» (Goulemot,1993 :125)

Esta biblioteca interior que se alimenta e nos alimenta através do texto lido, mas também de outras formas de arte que nos sensibilizam e enriquecem e ainda de toda a nossa vivência social e cultural é, com efeito, o suporte daquilo a que chamamos civilização.

Margarida Fróis

terça-feira, 2 de junho de 2009

Livro do mês: as palavras de Jean Paul Sartre

O Autor:

Jean-Paul Charles Aymard Sartre (Paris, 21 de Junho de 1905 — Paris, 15 de Abril de 1980) foi um filósofo francês, escritor e crítico, conhecido representante do existencialismo. Era um artista militante, e apoiou causas políticas de esquerda com a sua vida e a sua obra.
Repeliu as distinções e as funções oficiais e, por estes motivos, se recusou a receber o Prémio Nobel de Literatura de 1964.

A obra:

As palavras, obra publicada em 1964, é a única narrativa autobiográfica de Jean-Paul Sartre. A história cobre a sua infância dos 4 aos 11 anos e encontra-se dividida em duas partes: « Ler » e « Escrever ». Numa retrospectiva do passado Sartre explica o ambiente em que nasceu e cresceu, por vezes em tom acusatório. Relata o seu contacto com os livros desde tenra idade e dá-nos a conhecer as suas dúvidas existências, que já se manifestavam desde os seus sete anos. Além disso dá a conhecer as suas motivações para a escrita bem como as etapas que percorreu como escritor.
Excerto:

“Comecei a minha vida como hei-de acabá-la, sem dúvida: no meio dos livros. No escritório de meu avô havia-os por toda a parte; era proibido espaná-los, excepto uma vez por ano, antes do reinício das aulas em Outubro. Ainda eu não sabia ler e já reverenciava essas pedras erigidas: em pé ou inclinadas, apertadas como tijolos nas prateleiras da biblioteca ou nobremente espacejadas em áleas de menires, eu sentia que a prosperidade da nossa família dependia delas.(…)
Anne-Marie fez-me sentar à sua frente, na minha cadeirinha; inclinou-se, baixou as pálpebras, adormeceu. Daquele rosto de estátua saiu uma voz de gesso. Perdi a cabeça: quem estava a contar?, o quê?, e a quem? Minha mãe ausentara-se: nenhum sorriso, nenhum sinal de conivência, eu estava no exílio. Além disso, não reconhecia a sua linguagem. Onde arranjava ela aquela segurança? Ao cabo de um instante, compreendi: era o livro que falava. Dele saíam frases que me causavam medo; eram verdadeiras centopeias, formigavam de sílabas e letras, estiravam os ditongos, faziam vibrar as consoantes duplas: cantantes, nasais, entrecortadas de pausas e suspiros, ricas em palavras desconhecidas, encantavam-se por si próprias e por seus meandros, sem se preocuparem comigo; às vezes desapareciam antes que eu pudesse compreendê-las; outras vezes, já eu compreendera e elas continuavam a rolar nobremente para o seu fim sem me perdoarem uma vírgula. (…)
(…) Começava a descobrir-me. Eu não era quase nada, quando muito uma actividade sem conteúdo, mas não era preciso mais. Escapava à comédia: ainda não trabalhava, mas já não brincava; o mentiroso encontra a sua verdade na elaboração das suas mentiras. Nasci da escrita: antes dela, havia apenas um jogo de espelhos; desde o meu primeiro romance, soube que uma criança se introduzira no palácio dos espelhos. Escrevendo, eu existia, e se dizia eu, isso significava: eu que escrevo. (…)”